Sociedade e cultura


Pode dizer-se que a sociedade portuguesa do século XIX é o verdadeiro objecto de observação queirosiana, o pretexto à volta do qual se vai desenvolver toda a obra de Eça de Queirós e na qual ela se insere, bem como o próprio escritor. A minúcia e o rigor, bem como o humor e a paródia são atributos que caracterizam a forma como nos é apresentada a sociedade, retrato fiel de uma época que o autor pretendeu moralizar, descrevendo. Assim, afirma sem rodeios que «os costumes estão dissolvidos e os carácteres corrompidos.» E é essa dissolução que Eça pretende denunciar, utilizando o instrumento que maneja com maior destreza, a sua escrita.


Temas escolhidos
Classes sociais
Tipos sociais
Hábitos sociais
Educação
Saídas de Portugal
Literatura
Teatro
Música

Temas escolhidos

Os temas que Eça de Queirós se propõe tratar manifestam a intenção de relatar os vícios da sociedade, da forma característica do realismo, temas que também eles não são alheios à prática desse género literário.

Classes sociais

É talvez nesta rubrica que se afirma o maior virtuosismo de Eça de Queirós enquanto escritor e excelente conhecedor da sua época.

As descrições das classes que compõem o espectro social oitocentista são verdadeiros tesouros de minúcia, documentos históricos altamente fidedignos, levando, claro está, em conta liberdades literárias e pontos de vista pessoais, bem como o toque de humor tão característico.

A burguesia continua em período de plena ascensão, afirmando-se como classe dominante no comércio, nas letras, na política. Não é, pois, de estranhar que este seja o grupo social mais atingido pela descrição e crítica queirosianas. Relatam-se também as suas relações com os outros grupos sociais. «A classe média (…) abate-se na inércia» «O povo está na miséria»

«A burguesia proprietária de casas explora o aluguel.»

« É sobre o operário, sobre os trabalhadores, sobre o soldado, sobre o pobre que pesa a espoliação.»

As classes sociais desfilam sob os olhos atentos do leitores dos romances de Eça de Queirós. Do conselheiro à empregada, ninguém escapa a esta análise perscrutadora. Mas mais do que um descrição das classes propriamente ditas, Eça mostra-nos os chamados tipos sociais.

Tipos sociais

Hábitos sociais

A segunda metade do século XIX é atingida por inúmeras transformações a nível social, no que diz respeito à mentalidade da burguesia, classe que tem neste período "o seu tempo". Assim, adquirem-se novos hábitos que mostram bem esse desenvolvimento das classes médias, hábitos esses que Eça de Queirós ilustra profusamente nas suas obras. É o caso das idas à praia, designadas como "idas aos banhos", que começam a ser chiques na época, tendo sido até então completamente menosprezadas e consideradas como próprias das classes mais baixas. Encontramos referência a este fenómeno n'A Capital, onde se mencionam as idas à Ericeira e também n'O Crime do Padre Amaro, onde os importantes de Leiria se encontram periodicamente na praia da Vieira para passar a estação.

Educação

Este é um domínio que merece um enorme destaque, no entender de Eça de Queirós. Enquanto escritor, bem como enquanto homem, assume-se como um pedagogo genuíno. As considerações que tece a este respeito - e elas são muitas! - encontram-se espalhadas pelos seus romances, artigos de jornal e até cartas. As suas principais preocupações referem-se ao estado da instrução em Portugal, a nível institucional, e ao tipo de formação individual ministrada em casa, desde o berço: «A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães.»

O país começava a ter em conta também este tipo de questões, muito negligenciadas antes da vitória liberal. São levadas a cabo várias reformas (aliás referidas por Eça ) que contrariam a tendência anterior que entendia que os estudos roubavam mão-de-obra ao trabalho agrícola ou industrial. É empreendido um esforço no sentido de criar estudos intermédios, que esbarra com a oposição da Universidade de Coimbra. Esta instituição continua a ser dominante no Portugal do século XIX, até por ser a única universidade do país até 1911.

Saídas de Portugal

A emigração é uma constante na história de Portugal, desde os primórdios dos Descobrimentos. O escritor não se furta a essa realidade, afirmando que «a emigração, entre nós, é decerto um mal.», provocada pela «miséria, que instiga a procurar en outras terras o pão que falta na nossa.»

A partir de 1855 verifica-se um acentuar do fluxo emigratório, nomeadamente para o Brasil. A este facto não é alheio Eça, que caracteriza finamente aquele que vai em busca de fortuna e volta efectivamente rico , mas que é mal recebido em Portugal, mais exactamente, gozado, constituindo «o grande fornecedor do nosso riso» .

Bazilio, protagonista d'O Primo Bazilio, é um dos que, vendo-se falido no seu país, partiu para o Brasil, de onde volta um autêntico janota. Outros personagens emigram nos romances queirosianos - Gonçalo Mendes Ramires, que parte para Macheque, na Zambézia, e um emigrante desconhecido que parte no início da acção d'A Capital.

Outro tipo de viagens muito em voga no século XIX são as viagens de exploração, numa época em que o exotismo representa um valor fundamental devido ao mal du siècle, o spleen, o tédio. Encontramos várias personagens (além do próprio Eça, que relata a sua jornada ao Oriente n'O Egipto e em muitas notas soltas), nessa situação: Teodorico, n'A Relíquia, que empreende uma viagem pela Terra Santa, Bazilio (d'O Primo Bazilio), que conta à sua prima como esteve em «Constantinopla, na Terra Santa e em Roma.» e também André Cavaleiro, o cacique n'A Ilustre Casa de Ramires, que parte para «Constantinopla, à Ásia Menor»

Encontramos também muitas referências acerca de viagens a Paris, o que faz supor um desenvolvimento considerável nos transportes e um certo bem-estar social de algumas camadas da população.

«Vai-se a Paris, beber do fausto, do luxo.» , destino privilegiado de viagens lúdicas de muitas personagens queirosianas (Carlos da Maia, Bazilio).

Literatura

O escritor é, antes de mais, um homem, e como tal, tem tendência a glosar insistentemente aquilo que ama, categoria em que se inscreve a literatura. É um tema presente em grande parte dos seus romances e não só. Por um lado, dá-nos uma imagem (muito matizada pela sua ideologia) daquilo que se vai escrevendo em Portugal, nomeadamente revela um debate aceso na sociedade portuguesa do seu tempo, que opõe romantismo e realismo. Por outro lado, inserindo as suas personagens no seu ambiente social e por isso também cultural, dá-nos conta do que se lê no Portugal oitocentista e das relações das leituras com as mentalidades e classes sociológicas.

Eça de Queirós afirma peremptoriamente que «a literatura em Portugal está a agonizar: morre burguesmente e insipidamente(…)» . Desde logo se nota uma crítica cáustica a um certo género literário, mais conotado com literatice. A sua descrição do tipo de escritor responsável por esta decadência é bastante explícita: «poeta delambido, acordas as musas e adormeces a humanidade com rimas chochas e ideias estafadas, e moral do baixo império».

Em Portugal «a literatura - poesia e romance - sem ideia, sem originalidade, convencional, hipócrita, falsíssima, não exprime nada.»«(…) nenhum movimento real se reflecte, nenhuma acção original se espelha.»

Artur Corvelo, n'A Capital, representa o poeta, classificado como portador de uma «anemia intelectual» e de um «lirismo galopante» .

A propósito do romance escrito no país, Eça diz que se trata da «apoteose do adultério», um autêntico «drama de lupanar», sobre o qual «as mulheres estão derramando as lágrimas da sua sensibilidade» . O leitor pode deliciar-se com uma paródia do que se escreve em Portugal, da autoria de Ernestinho Ledesma, uma personagem d'O Primo Bazilio, que se ocupa de uma peça em cinco actos intitulada Honra e Paixão.

O já referido debate entre romantismo e realismo está presente na própria obra de Eça de Queirós. Sendo um autor que denuncia o romantismo decadente, sobretudo com a ideologização provocada pela participação na Geração de 70, ele sente-se também seduzido pelo romantismo humanitário de Antero de Quental. Este debate está inteiramente anotado no célebre episódio do jantar no Hotel Central (n'Os Maias) em que se confrontam Ega, partidário intransigente do realismo naturalista, Tomás de Alencar, personificação do romantismo sentimentalista (que acaba por ser o que mais dura, o mais coerente, fiel a si próprio e aos seus princípios) e onde intervêm também Carlos da Maia e Craft, defensores do idealismo, da "arte pela arte", da forma como manifestação artística suprema.

O registo das obras que se vão lendo em Portugal na época é bastante elucidativo. Para além das alusões e comentários a obras publicadas à data, como a História de Portugal de Oliveira Martins e a História da Inquisição de Alexandre Herculano , referem-se as diversas correntes de gostos e correntes que vão definindo o estatuto das personagens. Nos círculos considerados intelectuais de vanguarda, como é o caso do Clube Republicano, lê-se Proudhon, Juvenal, Comte, Byron, Vigny, Darwin, e considera-se Feliciano de Castilho como «uma ofensa à inteligência» . Este facto denota uma mentalidade que faz a apologia de ideias como o positivismo, evolucionismo, ideais laicos e republicanos, com tendências socializantes. Castilho, juntamente com Figuier e Bastiat, são, no entanto, autores lidos por uma classe instalada, comodista, representada por Jorge n'O Primo Bazilio. A mulher burguesa também tem um tipo de leitura típica, e que por vezes conduz a comportamentos mais ilícitos. Luiza (d'O Primo Bazilio), por exemplo, suspirou na juventude com as aventuras escocesas de Walter Scott e vibra, como mulher adulta, com as venturas e desventuras d'A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas. D. Juan não é apreciado por esta burguesia, que o considera como um «livro detestável». Crê-se até «que tem páginas incompreensíveis» . Muitos autores são referidos por Eça, dos quais se destacam Vitor Hugo (que Eça afirma amar "comme une brute" , Lamartine, Babier e Balzac expoentes do romantismo francês.

Teatro

A ideologia liberal atribui grande importância social ao teatro, empreendendo, por isso, esforços no sentido de dotar o país com as infra-estruturas necessárias ao seu desenvolvimento e manutenção. O teatro é, então, considerado como um dos «elementos mais poderosos da civilização actual».

O mais importante palco nacional é o Teatro de S. Carlos, abundantemente mencionado por Eça de Queirós. Os historiadores afirmam, no entanto, que o seu público permanecia mais ou menos fixo, constituído pela elite das elites dos titulares, altos funcionários, burgueses, todos os que dispõem de lugar na fidalguia, na política, no dinheiro, nas artes e letras. É esta a realidade que vemos espelhada na obra queirosiana. Não se vai ao teatro por causa do espectáculo, mas por causa do convívio social, está-se atento a tudo menos ao que se passa no palco. Desta forma, Eça diz que o teatro «perdeu a sua ideia, a sua significação; perdeu até o seu fim. Vai-se ao teatro passar um bocado da noite, ver uma mulher que nos interessa, combinar um juro com o agiota, acompanhar uma senhora (…)» .

«O teatro em Portugal vai acabando.» As causas apontadas desta decadência são o facto de a literatura teatral se reduzir ao Frei Luís de Sousa, o próprio público (pelos motivos já referidos), os actores que «não pertencem a uma arte, pertencem a um ofício» e à pobreza geral gerada pela falta de subsídios.

Encontramos referências, nos romances, a representações que se realizaram de facto, como O Profeta , O Trapeiro de Paris, no D. Maria , entre outras.

Música

A música atravessa as obras queirosianas, ou melhor, as músicas, ecos de gostos populares ou nacionais, ou sucessos que passam em Portugal, vindos de França ou de Itália. A música assume-se como uma instituição social, afirmando a sua omnipresença no Portugal do século XIX e a sua importância social. É também um tema realista que não escapa à visão crítica de Eça de Queirós.

Em Portugal canta-se o fado. As alusões à canção nacional são mais do que muitas . Parece poder traçar-se a equação realista, segundo a qual fado seria igual a preguiça, lentidão, incúria. Marca também o tempo da espera amorosa e a alegria, culturalmente identificado com o vulgar, banal.

Mas também se dança a valsa , de que alguns exemplos concretos são o "Souvenir d'Andalousie" , as obras de Strauss ou a "valsa do beijo" .

O Teatro de S. Carlos, onde se representaram efectivamente diversas óperas ao longo do século XIX, funciona como eixo do mundo português, centro simbólico da capital. Eça de Queirós refere-se quase sempre a espectáculos reais quando aí situa as personagens.

Os compositores mais mencionados são Gounod, especialmente com Fausto, mas também com Medjé, e Offenbach, com a Grã-Duquesa de Gerolstein (levada à cena em Lisboa em 1873), símbolo de toda a ópera-bufa. Offenbach, muito apreciado pelo escritor, é alvo de algumas considerações, não-ficcionais. O compositor «então triunfava», mas foi mal compreendido: «Ele tem uma filosofia, vós não tendes uma ideia; ele tem uma crítica, vós nem tendes uma gramática.»

A música é um código social, uma linguagem, um meio de comunicação. A sociedade burguesa pretende mostrar-se instruída musicalmente, frequenta as representações das obras de Meyerbeer, mas revela-se profundamente ignorante, quando, por exemplo, troca o nome da Sonata Patética, interpretada por Cruges no sarau do Trindade (n'Os Maias) por Sonata Pateta.

São inúmeras as alusões a títulos de óperas, de árias e peças musicais que encontramos ao longo dos romances e a sua introdução tem sempre um propósito muito concreto, acrescenta em cada altura uma mais-valia de significado.

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